Proliferar ou Diferenciar?
 Perspectivas de destino das células-tronco.



Schwindt TT
Barnabé GF

 
Visão geral

O estudo das células-tronco (CT) tem-se mostrado uma área
bastante explorada nos diversos segmentos da biologia nos
últimos dez anos. Esse crescente interesse está relacionado às
possibilidades que as CT oferecem em terapias celulares, representando
uma revolução no entendimento dos mecanismos
de reparo e regeneração tecidual. Destaca-se ainda o fato de
poderem ser aplicadas em terapias para diversas doenças para
as quais não há tratamento eficaz.

As CT podem ser defi nidas segundo três propriedades: I)
auto-renovação, ou seja, capacidade de originar outra CT
com características idênticas; II) habilidade de se diferenciar
em mais de uma linhagem celular; e III) capacidade de
originar células funcionais nos tecidos derivados da mesma
linhagem49. Assim, as CT são células indiferenciadas capazes
de se diferenciar originando progenitores maduros, bem como
células efetoras completamente diferenciadas. É importante
distinguir as CT dos muitos tipos de células progenitoras (CP),
de forma que as primeiras se auto-renovam por toda a vida
de um organismo, enquanto as CP possuem auto-renovação e
potencialidade limitadas.

As CT podem ser classifi cadas segundo sua potencialidade
em toti, pluri ou multipotentes. São chamadas de totipotentes
as células capazes de gerar todos os tipos celulares embrionários
e extra-embrionários, como o zigoto e o blastômero; as
pluripotentes podem originar todas as células que formam
um embrião (propriamente dito) e são provenientes da massa
interna do blastocisto (CT-embrionárias); são classifi cadas
como multipotentes as células que originam apenas um subgrupo
de linhagens celulares, por exemplo, as CT-mesenquimais
(CTM) e neurais. Existem ainda células oligopotentes,
capazes de gerar células mais restritas a uma linhagem do
que as multipotentes, e as unipotentes, que originam apenas
um único tipo celular maduro50. Estas duas últimas devem ser
consideradas células progenitoras e não-CT. Sendo esta uma
área nova, é comum a confusão de conceitos e o uso impróprio
das defi nições acima.

Podemos dividir as fontes de CT em três classes: embrionária,
fetal e adulta. As CT-embrionárias (CTE) são derivadas
da massa interna do blastocisto cinco dias após fertilização (em
humanos) e podem ser expandidas em cultura na presença de
fatores que impeçam sua diferenciação (Figura 1). O uso dos
fatores trófi cos é essencial, visto que, na sua ausência, as CTE
se diferenciam espontaneamente em todos os tipos de tecidos.


Sabe-se que, quando injetadas sob a pele de um camundongo
imunossuprimido, as CTE podem crescer dando origem a teratomas43.
Sendo assim, um dos maiores desafi os que antecedem a
utilização das CTE em terapias celulares é o controle sobre a sua
diferenciação. Por outro lado, podem ser amplamente expandidas
em cultura, sem que ocorra perda aparente da potencialidade e
da capacidade de auto-renovação.

No outro extremo, temos as CT-adultas que, ao contrário das
CTE, não são capazes de manter suas propriedades por longos
da população em estudo, ou seja, há a possibilidade de coexistirem
Células-tronco mesenquimais nos três tipos celulares do SNC: neurônios, astrócitos e oligodendrócitos  
distintos tipos de CT e progenitores em um tecido, que
contribuiriam para o surgimento dos outros tipos celulares. A
contribuição de células entre diversos tecidos também pode
ocorrer a partir da ação de uma única CT-pluripotente, que
é capaz de dar origem a células de tecidos formados a partir
de diferentes folhetos embrionários. O último mecanismo de
plasticidade a ser considerado é a fusão celular em que, após a
fusão entre células de diferentes linhagens, os marcadores das
células do hospedeiro são transferidos para a célula fundida.

Terada et al. Demonstraram, in vitro, que células da medula
óssea podem fundir-se espontaneamente com células-tronco
embrionárias. Dessa forma, as células da medula óssea fundidas
podem assumir o fenótipo das células receptoras, sugerindo
uma “transdiferenciação”45,52. No entanto, parece improvável
que o mecanismo de fusão seja responsável pela regeneração
tecidual em larga escala, visto a baixíssima freqüência com
que esse evento ocorre.

Em diversos estudos, a proporção de CT transplantadas,
que foram incorporadas pelo tecido lesado e que se diferenciaram,
não explica a melhora funcional observada44. Assim,
uma explicação relevante para a regeneração tecidual após
aplicação de CT é a liberação de citocinas e fatores trófi cos no
local da lesão. Como a maioria das CT é capaz de identificar e
migrar até o local lesado, é clara sua capacidade de responder
a fatores quimiotáticos (liberados pelo tecido lesado). Há
ainda evidências de que estas células, por sua vez, podem ser
capazes de liberar outras moléculas em resposta aos estímulos
recebidos. Há várias hipóteses quanto às supostas funções de
tais fatores na lesão, dentre elas: liberação de moléculas que
previnem a morte celular, recrutamento de CT adjacentes do
próprio tecido (com subseqüente diferenciação), interferência
na inflamação provocada pelo dano tecidual (modulando a
resposta do sistema imune), suporte de moléculas ou enzimas
que suprem defeitos metabólicos11,21,23,32,42.

Nos últimos cinco anos, diversos trabalhos têm fornecido
pistas da existência de CT em praticamente todos os tecidos de
um organismo adulto, não se tratando apenas de progenitores
comprometidos, mas células com capacidade de se diferenciar
em tipos celulares não relacionados ao tecido de onde provêm.

Se o próprio corpo possui essa gama de células com elevada
potencialidade, então por que não ocorre regeneração completa
de todos os tecidos, após a lesão aguda ou mesmo nas situações
de desgaste natural e envelhecimento?

Provavelmente as CT mais potentes em um organismo
adulto mantêm-se “indiferenciadas” desde estágios iniciais do
desenvolvimento, porém estão sob controle de microambientes
que sinalizam para uma especifi cidade celular de acordo com
o contexto tecidual. Já na condição de cultura, tais células
são estimuladas por diversos fatores que não existem em seu
ambiente de origem e que alteram o seu comportamento. Assim
sendo, muitos experimentos realizados in vitro não podem
ser extrapolados para modelos in vivo. Em um futuro, que se
espera não distante, uma possível estratégia será recrutar as CT
A medula óssea é um órgão composto por duas linhagens
celulares distintas e dependentes, a hematopoiética e o
estroma associado, que formam um sistema cooperativo.


O estroma medular está relacionado à manutenção de um
microambiente no qual as CT-hematopoiéticas se mantêm e
a progênie diferenciada recebe os sinais necessários para a
maturação celular.

A existência de células-tronco não-hematopoiéticas na medula
óssea foi inicialmente sugerida por Cohnheim, há mais de 130
anos. No entanto, foi com os achados de Friedenstein et al., em
meados de 1970, que essa teoria veio a ser comprovada com
a descoberta das CTM. Eles encontraram, em uma cultura de
células da medula óssea, uma população de células aderidas ao
plástico em forma de fuso, semelhantes a fi broblastos. Observaram
também que essas células possuíam capacidade para se
diferenciar em colônias que lembravam pequenos depósitos de
osso ou cartilagem13,38.


Até hoje, o cultivo de CTM é feito selecionando-se as células
com propriedade de adesão ao plástico, enquanto as células que
permanecem em suspensão são facilmente removidas. Outros
tipos celulares “contaminantes” (como macrófagos e linfócitos)
são eliminados após determinado número de passagens19.


Quando plaqueadas em baixa densidade celular, formam colônias
derivadas de uma única célula precursora (CFU-F), sob
determinadas condições de cultivo. Tais células apresentam
grande capacidade de auto-renovação in vitro.


O sangue periférico e o de cordão umbilical também são fontes
de CTM, todavia apresentam pouca quantidade desse tipo celular
comparado com a medula óssea51, além de ainda não estarem
bem-estabelecidas as condições ideais de cultivo.

As CTM são a fonte de tecido que envolve a medula óssea
e, portanto, espera-se que elas se diferenciem em células das
linhagens osteogênica, adipogênica e condrogênica in vitro.

Com freqüência ocorre mineralização da matriz extracelular e
expressão de marcadores fenotípicos, que indicam a presença
de células dessas três linhagens na cultura. No entanto, é o
comportamento de linhagens clonais após transplante, e não o
fenótipo observado in vitro, que defi ne o grau de potencialidade
das CTM. Nesse sentido, após o transplante de células derivadas
de uma única colônia (clones) observou-se reconstituição da
medula óssea com células clonais do doador, compreendendo
todo o estroma e adipócitos5.

Mas nem todas as células formadoras de colônias são de fato
CT-multipotentes. Analisando-se as colônias individualmente,
nota-se a heterogeneidade da população em cultura relacionadas
à taxa de proliferação e à morfologia. Assim, sugere-se que a
Medula óssea seja composta pela mistura de células progenitoras
mais comprometidas e CT não-comprometidas, capazes de se
diferenciar em células das três camadas germinativas. O isolamento
e conseqüente caracterização das variedades celulares
presentes é difi cultado pela ausência de marcadores antigênicos
específicos bem estabelecidos.
 
Nos três tipos celulares do SNC: neurônios, astrócitos e oligodendrócitos
(Figura 2). Cada neuroesfera é derivada de uma
única célula-tronco que, por divisão assimétrica, dá origem à
outra célula-tronco e a um progenitor mais comprometido com
uma linhagem específi ca. Cada progenitor dá origem somente a
outros progenitores. Assim sendo, apenas uma pequena fração da
neuroesfera corresponde às verdadeiras células-tronco; a maioria
são progenitores mais comprometidos (Figura 3)39.

As células-tronco neurais, assim como as CTM, além de se
diferenciarem em tipos celulares específi cos, podem secretar
fatores de crescimento e citocinas, auxiliando a regeneração no
local da lesão. Estudos recentes demonstraram que os fatores
de crescimento FGFs e EGF aumentam a regeneração pós-AVE
(acidente vascular encefálico)25. Mostrou-se também que FGFs
podem causar melhorias em pacientes com Alzheimer, onde
comprovadamente há a diminuição da neurogênese ou a morte
dos neurônios recém-nascidos14. Porém, como essas moléculas
são grandes demais para transpor a barreira hematoencefálica,
as neuroesferas tornam-se potenciais candidatas à terapia gênica,
sendo modifi cadas geneticamente para a liberação de substâncias
de interesse diretamente no local da lesão.

O melhor exemplo de terapia gênica utilizando células-tronco,
até o momento, é a sua aplicação em modelos animais para Parkinson.
Estudos pré-clínicos com roedores e primatas mostraram
que o GDNF (glial derived neurotrophic factor) teve efeito
bastante animador em modelos de Parkinson. Após indução de
lesão da substância negra com 6-OHDA (6-hidroxidopamina) e
MPTP (1-metil-4-fenil-1,2,3,6-tetrahidropiridina) em roedores e
primatas, respectivamente, observou-se que a administração local
de GDNF causava grande melhora nos testes motores. Além
do efeito neuroprotetor do GDNF, esse fator pode também atuar
na proliferação celular, gerando novos neurônios na região da
lesão. Isso suscitou novas perspectivas para a utilização dessa
substância em pacientes. Um estudo clínico piloto, com cinco
pacientes diagnosticados com doença de Parkinson consistiu da
implantação intraperitoneal de uma bomba de infusão de GDNF
que, através de um capilar, injetava doses diárias de GDNF
diretamente no cérebro desses pacientes17,36. Os resultados após
um ano mostraram que:
efeitos colaterais clínicos graves não foram detectados;
houve melhora de 39% no sub-score UPDRS em pacientes
sem a medicação L-Dopa;os pacientes apresentaram 61% de melhora nas atividades
diárias; as discinesias devido à medicação foram reduzidas em
64% e em pacientes sem medicação L-Dopa não foram
observadas;



FIGURA 1.
erapia com células-tronco. A partir de um blastocisto as célulastronco
são extraídas e manipuladas in vitro, para que possam originar
diferentes tecidos, com o potencial para serem transplantados



FIGURA 2.
Neuroesferas podem diferenciar-se em neurônios (β-Tubulina III+),
astrócitos (Glial Fibrillary Acidic Protein+) e oligodendrócitos
(Galactocerebrosídeo-C+), após a remoção de fatores de crescimento.


FGF/EGF


FIGURA 3.
Uma única célula-tronco, por divisão assimétrica, dá origem à
outra célula-tronco e a um progenitor mais comprometido. Cada
progenitor origina outros progenitores idênticos a si. Ao final desse
processo, uma neuroesfera contém apenas uma pequena fração de
células-tronco e as células são progenitores neurais, em sua maioria.




Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo-SP.
Schwindt TT e Barnabé GF são bolsistas da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP).


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Células-Tronco e Câncer:
Vida e morte com uma origem comum?


Dr.Flávio Henrique Paraguassú-Braga
Dra. Adriana Bonomo

As células-tronco estão presentes desde a vida embrionária até a vida
adulta, e provavelmente até nossa morte. São elas as responsáveis
pela formação do embrião e também pela manutenção dos tecidos na
vida adulta. No início da vida embrionária, as células-tronco são
virtualmente totipotentes, ou seja, apresentam capacidade de gerar
quaisquer tecidos do organismo. Contudo, após a formação do
embrião propriamente dito, diversos tecidos mantêm células-tronco
que participam da fisiologia normal (e da patologia também) na vida
adulta.


Conceitualmente, as células-tronco apresentam duas características
fundamentais: 1) auto-renovação ilimitada, por exemplo, a
capacidade de multiplicar-se gerando células iguais à célula-original
durante toda a vida, e ; 2) pluripotência, como, por exemplo, a
capacidade de gerar diferentes tipos celulares.


Apesar de existirem em baixa freqüência, seus números são
suficientes para manter os tecidos que necessitam de renovação
constante. Em alguns sistemas onde são bem caracterizadas, sua
freqüência é estimada em 1 para cada 100.000 células totais daquele
tecido. As células-tronco, à medida que se dividem, geram
progenitores comprometidos, com uma capacidade de proliferação
ainda mais limitada e um restrito potencial de diferenciação devido ao
comprometimento com uma linhagem celular única. A partir deste
ponto, esta célula já comprometida chamada precursor, já possui
morfologia definida e seu potencial proliferativo é limitado ou mesmo
nulo.


As células-tronco mais bem conhecidas, são as células-tronco do
tecido hematopoiético, identificadas por Till e McCulock há mais de 40
anos. Recentemente, outros tecidos tiveram suas células-tronco
identificadas como do sistema nervoso, fígado, pele e mucosas,
intestinos e até mesmo coração.


Figura 1. Hematopoiese


O tecido hematopoiético se desenvolve na vida adulta de maneira hierarquizada. A Célula
Tronco Hematopoiética (CTH) é multipotente e imortal, ou seja, apresenta potencial para
diferenciar-se em qualquer célula hematopoiética e pode ao longo prazo gerar outras célulastronco.
As CTH originam as Células Progenitoras Hematopoiéticas (CPrH), que são células
determinadas às diferentes linhagens hematopoiéticas, com alto potencial e taxa de
proliferação. Essas por sua vez originam as Células Precursoras Hematopoiéticas (CPH) e
Células Maduras (CM) do sangue e de outros órgãos, sendo totalmente diferenciadas morfo e
funcionalmente.




No sistema hematopoiético, o papel das células-tronco é muito claro.
Por hora, produzimos 1-5x109 células vermelhas e 1-5x109 células
brancas. A produção desses tipos celulares, os três principais dentre
outros elementos celulares do sangue, é constante e necessária já
que a meia vida das células sanguíneas é muito curta, sendo em
alguns casos da ordem de horas. A homeostasia do tecido sanguíneo
é rigidamente regulada e qualquer alteração nessa dinâmica entre
morte e produção celular resulta em algum processo patológico. Por
exemplo, quando não há produção de células novas ou há morte em
excesso de células diferenciadas, temos aplasias ou anemias. Por
outro lado, quando temos uma produção exacerbada de novas células
ou uma resistência maior de células diferenciadas à morte, temos
neoplasias ou cânceres. Esses desequilíbrios também ocorrem em
tecidos de outra origem como tecido nervoso, conjuntivos (osso,
cartilagem) e tecidos epidermais (pele, intestinos, estômago, e
glândulas).


Câncer: "desdiferenciação" ou doença da célula-tronco?


Classicamente, aprendemos que um câncer é uma célula imortal, ou
que é uma célula que apresenta características embrionárias pois,
como muitos tecidos embrionários, é uma célula que não apresenta
um estado de diferenciação claro e, ao mesmo tempo, apresenta uma
notória capacidade de proliferação. Esse conceito evoluiu para "o
câncer é uma célula incapaz de diferenciar-se" refletindo o antigo
conceito de células com características embrionárias no indivíduo
adulto.


Atualmente, o conceito de um câncer como uma doença de células
que não se diferenciaram ou que perderam seus mecanismos de
controle de proliferação evoluiu para "o câncer é uma doença da
célula-tronco".


Inicialmente, aprendemos que um câncer tem uma capacidade de
proliferação ilimitada. Contudo, o que parece é que um tumor, seja
um tumor sólido, seja uma leucemia (câncer das células do sangue),
se comporta como uma unidade tecidual, com uma dinâmica de
renovação que envolve proliferação e morte de uma população celular
heterogênea. Esta heterogeneidade aparece principalmente em
relação ao potencial proliferativo dessa população.


Leucemias: um modelo enriquecedor


Se pensarmos numa leucemia da maneira clássica descrita no item
anterior, na qual todas as células são capazes de proliferação
ilimitada, qualquer célula purificada de uma população de células
leucêmicas seria capaz de proliferar indefinidamente tanto in vitro
quanto in vivo. A partir da década de 60, pesquisadores como Bruce e
Gaag, Wodinsky, entre outros, e posteriormente Park e seus
colaboradors no início dos anos 70, apresentaram as primeiras
evidências de que isso não era verdade. Esses últimos evidenciaram
que apenas 1 a 4% de células leucêmicas de camundongos eram
capazes de formar colônias1 quando transferidas para outro animal
geneticamente idêntico.


Figura 2. A origem da célula tronco leucêmica (CTL)

Uma determinada leucemia pode ser vista como um tecido hematopoiético anormal iniciada
por CTLs que sofrem uma desenvolvimento aberrante e pouco controlado. As CTLs podem
ser CTHs que se tornaram leucêmicas como resultado de alterações acumuladas (1) ou
progenitores mais comprometidos que readquiriram capacidade de autorenovação da célula
tronco (2).


Mais recentemente, isso foi demonstrado para leucemias humanas,
por Blair e colaboradores e Bonnet e Dick. Utilizando camundongos
imunodeficientes (animais desprovidos de sistema imune e portanto
incapazes de rejeitar quaisquer células), mostraram que apenas uma
fração de células leucêmicas de leucemia mielóide aguda (LMA) era
capaz de gerar doença (por exemplo, proliferar). Essa população
correspondia à fração com características de células-tronco, similares
às células-tronco hematopoiéticas2. Mais do que isso, mostraram que
as outras populações, que não apresentam as características da
célula-tronco, não eram capazes de gerar a doença e que a freqüência
das células capazes de gerar doença era extremamente baixa,
variando de 0,2 a 1% da população total de células doentes.

Muitas leucemias, e alguns tumores sólidos também, apresentam
anormalidades genéticas que, por sua vez, caracterizam a patologia
ou, por outras vezes, correlacionam com o prognóstico da doença. De
qualquer forma, tais anormalidades nos gens, que envolvem deleções
ou translocações de cromossomos ou suas partes servem para
identificar essas células tumorais e talvez sua origem. Ainda na
leucemia mielóide aguda (LMA), a anormalidade cromossômica mais
comum é a translocação de parte do cromossomo 8 que se justapõe
ao cromossomo 21, identificado como um transcrito quimérico
chamado AML1-ETO. Em pacientes em remissão da LMA, o transcrito
AML1-ETO, pode ser encontrado nas células-tronco hematopoéticas
normais, e as mesmas células quando isoladas são capazes de gerar
células sanguíneas normais, assim como não foram capazes de gerar
leucemia. O que indica que a translocação ocorreu nas células-tronco,
mas alguma ou algumas alterações a posteriori foram necessárias
para a transformação maligna. Isto é verdade em outros tipos de
leucemias, como na leucemia mielóide crônica, onde um produto de
translocação gênica (específico dessa leucemia) aparece não só nas
Células leucêmicas, mas também em células hematopoiéticas normais
e também em outros tipos celulares como no endotélio. Este último
tem a mesma origem embriológica que as células do sangue,
indicando que a translocação ocorreu numa célula tronco embrionária,
que originou tanto o tecido hematopoiético que se malignizou quanto
os vasos sanguíneos, que são normais.
 
Figura 3

A manutenção de um tecido tumoral baseado em uma célula tronco tumoral leva a
complicações biológicas no curso da doença. A maioria dos métodos de tratamento
quimioterápicos têm como alvo células em proliferação (células vermelhas). As células tronco
(células azuis) são pouco freqüentes e quiescentes portanto resistentes a esses tratamentos.
A longo prazo elas voltam a compor um novo tecido tumoral (1). Baseados nos estudos da
biologia da célula tronco, a diferenciação das células tronco tumoral, a tornaria sensível à
quimioterapia (2). O mesmo aconteceria ao estimular a proliferação da célula tronco tumoral
(células verdes - 3). 
 
 
Acredita-se que a transformação maligna se dá pelo acúmulo de
mutações, que podem ser acompanhadas ou não de aberrações
cariotípicas (anomalias genéticas citadas acima). A probabilidade das
alterações ocorrerem se relaciona ao potencial proliferativo da
população em questão. Por isso, essa transformação maligna pode
não ocorrer na célula-tronco, que é uma célula com freqüência
quiescente, mas pode ocorrer em seus progenitores, que são células
que passam por vários ciclos de divisão para expansão da população
periférica. De fato, podemos até propor que a baixa freqüência das
células tronco adultas somado a sua quiescência a protegem de
mecanismos de transformação maligna.


Câncer de mama


Assim como o tecido hematopoiético, o tecido mamário possui
células-tronco capazes de gerar diversos tipos celulares.
Se nos lembrarmos da função da mama, que é a produção de leite
durante o período de gestação e lactação, podemos dizer que a mama
por excelência é um tecido displásico. Responde à gestação com
hipertrofia, proliferação e especialização de células epiteliais que
produzem leite, regredindo após a lactação. O tecido mamário é
notoriamente formado pelo desenvolvimento de ramificações, botões
mioepiteliais que adentram o tecido adiposo subjacente quando em
desenvolvimento. Ao final das terminações existe um sítio com células
tidas como células-tronco da mama: as mesmas geram células
progenitoras, que dão origem a uma camada externa, mioepitelial, e
outra população que forma uma camada interna, que se diferenciam
para formar a luz do tubo em desenvolvimento.


Analogamente às leucemias, o câncer de mama parece depender de
uma célula-tronco para se manter, porém um modelo baseado em
células-tronco para câncer de mama surgiu apenas no ano passado .
De maneira similar ao realizado com as leucemias do sistema
hematopoiético, Al-Hajj e colaboradores separaram diversas
subpopulações de células de câncer de mama em função da presença
de marcadores moleculares específicos e injetaram em camundongos
imuno-incompetentes. Das várias subpopulações, apenas uma foi
capaz de gerar tumores nesses camundongos, com toda a
heterogeneidade celular presente na população original. Esses dados
mostram que também, neste caso, há uma célula-tronco cancerosa, e
que apenas esta é tumorigênica.


Implicações


A pesquisa e caracterização de células-tronco tumorais é crucial no
entendimento do câncer enquanto doença. Muitas das informações
que obtemos e derivamos para o diagnóstico, prognóstico e
tratamento dessa patologia deriva de populações heterogêneas, com
diferentes graus de maturação. Cada vez mais temos a noção de que
o câncer é um tecido ou uma unidade tecidual, que se desenvolve
com suas próprias células-tronco, assumindo um crescimento que não
corresponde ao padrão do organismo. Neste momento, cada vez mais
se torna urgente a caracterização das células-tronco tumorais para
otimização das metodologias de diagnóstico e avaliação de
Prognóstico. Um melhor ou pior prognóstico está relacionado à
freqüência de células-tronco em um tumor. A conseqüência direta é a
necessidade do desenvolvimento de estratégias terapêuticas que
consigam atuar sobre as células-tronco, e não apenas sobre as células
com alto potencial proliferativo, porém com baixa capacidade de
autorenovação. Essas estratégias deverão considerar a especificidade
dos marcadores das células-tronco, sua baixa freqüência e baixa taxa
de proliferação que a torna resistente aos quimioterápicos ciclodependentes.
Quem sabe, num futuro próximo, novas formas de
regular o crescimento e manutenção da célula-tronco, estarão
disponíveis para o tratamento das doenças malignas.



Dr. Flávio Henrique Paraguassú-Braga, trabalha no Banco de Sangue de
Cordão Umbilical e Placentário do Instituto Nacional de Câncer, do Rio
de Janeiro.
Dra. Adriana Bonomo é pesquisadora da Divisão de Medicina
Experimental do CPQ do mesmo instituto e é também professora do
Instituto de Microbiologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
http://www.comciencia.br/reportagens/celulas/13.shtml

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